quarta-feira, 15 de abril de 2009

La Máquina de Hacer Pájaros


No início da década de setenta o mundo deleitava-se com o rock progressivo. Da Patagônia à Islândia, diversos grupos surgiram, influenciados principalmente por bandas como Yes, Genesis e Pink Floyd. A Argentina, rockeira desde sua essência, também estava envolvida nessa sonoridade, e lá um jovem garoto chamado Charly Garcia (teclados, voz) começava a despontar como uma promessa na música portenha. Sua primeira participação em discos foi no ano de 1972, com somente 21 anos, tocando teclados no raríssimo Cristo Rock, de Raúl Porchetto.


Antes, Charly já havia formado uma das principais bandas argentinas de todos os tempos, a Sui Generis, ao lado do também importante Nito Mestre e contando com Carlos Piegari, Beto Rodriguez, Juan Belia e Alejandro Correa. O grupo fez enorme sucesso com o seu folk rock tradicional, lançando quatro aclamados álbuns, mas, devido à censura imposta pela ditadura militar e também pela diferença sonora entre Charly e Nito, acabou sucumbido em 1975, com o lançamento do maravilhoso álbum Adios Sui Generis, gravado ao vivo para um público de quase 30.000 pessoas.


Nito então fundou a banda de folk rock Nito Miestre y los Desconocidos (quem puder, ouça o primeiro álbum) enquanto Charly decidiu seguir com suas loucuras sonoras, formando então um novo grupo, o qual veio se chamar La Máquina de Hacer Pájaros, em homenagem a uma tirinha de jornal local que contava com um tal de García que havia construído uma máquina de fazer pássaros. Neste novo projeto Charly levaria ao extremo o seu instrumento favorito, o teclado, já que a banda inovou, contando com dois tecladistas ao mesmo tempo.


No início, o La Máquina era um trio tipo ELP, formado por Charly e mais dois ex-integrantes da Crucis, Oscar Moro (bateria, que também tocou no Los Gatos Selvagens) e José Luis Fernández (baixo). Em seguida entraram Gustavo Bazterrica (guitarras, ex-Reino de Munt - banda de Porchetto) e Carlos Cutaia (teclados, ex-Pescado Rabioso), formando a espinha dorsal da música complexa e densa que Charly tanto sonhava. 

Temos então monstros do rock argentino unidos com a única intenção de tocar um som de ótima qualidade, com muitas viagens e longos temas instrumentais. Os primeiros shows começaram a acontecer no ano de 1976, para pouco mais de trezentas pessoas, lembrando que na época o progressivo já estava perdendo espaço para o punk e a disco music.


Mesmo assim Charly conseguiu um contrato com a gravadora Microfón, e, no mesmo ano, lançou o maravilhoso disco La Máquina de Hacer Pájaros. A capa ficou a cargo do autor da tira de jornal, um tal de Crist, que elaborou uma pequena história onde o protagonista, García, apresentava a banda para um amigo, definindo-a como um "pássaro progressivo". Dentro da capa havia outra, toda preta, contando com a foto dos cinco integrantes em um colorido todo especial. Outro destaque é que todas as músicas foram compostas por Charly, mesmo contra a vontade dele, que pretendia ser somente mais um integrante. 

Os teclados introdutórios de "Bubulina", com Charly cantando sobre as diversas camadas de sintetizadores que surgem imitando uma orquestra, abrem o primeiro lado. A voz suave do tecladista dá espaço para a guitarra, que sola lentamente acompanhada pela banda e por muitos sintetizadores, que tomam contam dos canais. A forte influência jazzística aparece na guitarra de Gustavo, que sola durante a letra. Camadas de vocais se intercalam com a voz de Charlie. Temos uma pequena pausa onde os teclados assumem novamente a posição de destaque, com a guitarra novamente solando. Os moogs agora aparecem, com diversos duelos de escalas entre eles e a guitarra. Vale a pena destacar a bela presença dos teclados nessa faixa. A canção segue, com a lenta introdução sendo reproduzida, tendo uma intervenção mais pesada, porém curta, terminando com os teclados viajando em notas que decaem como um avião atingindo o solo. 

A faixa seguinte, "Como Mata El Viento Norte", lembra a fase Sui Generis. O violão folk junto aos sintetizadores dá espaço para vocalizações e a letra da canção, que é acompanhada pelo andar tradicional da Sui. Temos uma sessão instrumental com destaque para piano e baixo, que retoma e encerra com a letra da canção. 

A marcação de bateria, acompanhada por intervenções de baixo, guitarra e teclados, introduz "Boletos, Pases y Abonos", que tem um ritmo bem suingado, similar ao que o Vímana fez mais ou menos na mesma época. Destaque para o refrão, bem rock'n'roll, lembrando as canções dos Mutantes na fase em que Serginho era o único do trio original. Temos uma sessão instrumental onde a levada da banda (guitarra, baixo e guitarra) abre espaço para um maluco solo de órgão. A guitarra então toma conta dos canais, com uma ótima levada da cozinha e com a participação direta ao fundo dos teclados de Charly e Cutaia. O órgão novamente volta a solar, atingindo um pique muito rápido, voltando então ao tema principal desta bela faixa, que encerra com muito barulho de baixo, bateria, guitarra e teclados. 

Finalmente, uma cópia de "The Return of the Giant Hogweed" do Genesis introduz "No Puedo Verme", outra canção bem suingada, com destaque para o belo trabalho de teclados e do baixão de José Luis. Temos uma sessão instrumental bem delirante, com uma baita levada jazzística, onde teclados e guitarra solam alucinados sobre camadas de órgão e sintetizadores, no melhor estilo Return to Forever. A faixa retoma seu início, encerrando o lado A com mais um solo de moog e guitarra, com a cozinha mandando ver, inclusive no pequeno solo de bateria.

Os pianos de Cutaia abrem o lado B. "Rock And Roll" é uma canção que lembra bastante o Genesis de Trespass em sua introdução, com violões e vocalizações belas. Porém, o piano passa a executar acordes enquanto a cozinha passa a mandar ver em um baita rock'n'roll, onde Charly rasga sua voz em diversos gritos. Moogs e sintetizadores tomam contam em mais uma sessão bem trabalhada, ganhando uma cadência incomum para as bandas argentinas. A guitarra sola com gana, terminando com um pequeno trecho clássico. 

Os temas à la Sui Generis são retomados na folk "Por Probar El Vino y El Agua Salada", cheia de moogs e violões. A suíte "Ah, Te Vi Entre Las Luces" encerra esse primeiro álbum de forma brilhante. Os teclados viajantes de Cutaia trazem os vocais de Charly acompanhados pelo piano. A banda entra então, com uma marcação precisa, enquanto temos duelos de teclados e clavinete. A canção fica somente nos teclados, com os vocais acompanhados pela guitarra utilizando o dispositivo do volume. Temos uma longa sessão instrumental, onde primeiro o piano sola sobre camadas de teclados, chegando a uma parte mais jazzística, com solos de clavinete, órgão e guitarra. Uma sessão mais viajante de guitarra, pratos, baixo e teclados dá sequência à parte mais bonita da canção, que retoma o refrão com muito teclado e com as intervenções de moog. 

O belo solo de guitarra de Gustavo mostra como os argentinos tinham talento para ser uma poderosa banda no cenário mundial, levando a um solo de piano “quase-tango”, acompanhado pela cadência da cozinha e pelas variações de volume da guitarra, seguindo pelos longos acordes de teclado que encerram essa brilhante faixa de forma emocionante.


O disco mostrava todo o refinamento e a potência do grupo, bem como a ambição de fazer algo totalmente novo dentro do cenário rock portenho. Porém, fez pouco sucesso, já que o público argentino ainda preferia ver Charly nas canções acústicas do Sui Generis, o que não impediu o trabalho da banda de ser continuado.


No ano seguinte chegava às lojas o segundo álbum. Películas traz uma sonoriedade mais diferente, com um amplo trabalho nos arranjos e também na composição das canções, já que todos os integrantes acabaram se envolvendo na elaboração das peças, apenas as letras ficaram a cargo de Charly. O encarte vinha recheado de fotos e, na contracapa, as músicas possuíam pequenos comentários elaborados pelo próprio Charly. 

O disco abre com a instrumental “Obertura 777”, com os teclados trazendo o piano e o violão, que solam acompanhados pelo baixo e pelos pratos. A bateria muda de ritmo, deixando a canção bem suingada, com uma boa levada no baixo e com aquele órgão típico dos anos setenta. Clavinete e guitarra executam um bonito tema em escalas que alternam de tom, mostrando que a banda decidiu trabalhar ainda mais. 

“Marylin, La Cenicienta y Las Mujeres” encaixa no seguimento do disco, lembrando bastante o Genesis da fase quarteto. Um coral de crianças surge no meio da canção, repetindo a mesma frase, "todos tenemos hogar", várias vezes, enquanto o ritmo aumenta, dando espaço para uma parte bem hard, onde baixo e guitarra executam escalas iguais enquanto os teclados deliram. 

“No Te Dejes Desanimar” é mais uma canção bem trabalhada. Violões, piano e assovios trazem a letra da canção acompanhados de cordas, as quais foram conduzidas por Cutaia. Um pequeno tema instrumental retoma as letras, que mantém sempre a mesma harmonia do início ao fim. 

“Que Se Puede Hacer Salvo Ver Películas” encerra o lado A com um ritmo mais latino com sua introdução ao baixo e piano. O principal destaque da faixa fica justamente pela forte presença do baixo, que marca muito bem durante a entonação da letra. Uma sessão mais jazzística aparece, dando espaço para vozes de atores de filmes argentinos trazerem novamente as letras. Piano e órgão executam o tema principal, acompanhados pelo ritmo da cozinha (guitarra-baixo-bateria), aumentando o ritmo até os vocais assumirem novamente o posto principal. Por fim, o tema jazzístico é retomado, encerrando a canção com o tema principal.


“Hipercandombe” abre o lado B com uma ótima introdução instrumental. Temos uma levada tri dançante, onde a bateria de Moro está infernal. Outro destaque fica para o ótimo trabalho dos teclados. “El Vendedor de las Munecas de Plastico” é uma canção lenta, com a destacada presença do baixo e dos teclados, contando também com um bom solo de guitarra. 

“Ruta Perdedora” traz em sua introdução o piano, aliado a barulhos de carro, violões dedilhados e a voz de Charly. Temos muitas vocalizações e teclados, com uma levada bem progressiva. O moog introduz uma pequena sessão instrumental, onde os instrumentos executam o mesmo tema, terminando com a execução de um tema principal. 

Por fim, a instrumental “En Las Calles de Costa Rica” é um jazzão de primeira, com solos de guitarra e teclado que tornam-se ainda melhores com a ótima performance da cozinha. Uma sessão mais lenta, onde o baixo sola sobre camadas de teclados, traz novamente o jazz, com um longo solo de guitarra, encerrando a canção e o álbum com uma quebradeira geral.


Temos um disco mais ligado ao jazz fusion de bandas como Return to Forever, Weather Report e The Eleventh House, e que também acabou fazendo pouco sucesso com o público. A banda então acabou após uma mini-excursão de divulgação, tendo seu último show realizado no Festival de Amor de 1977, contando com a participação de David Lebón, Rinaldo Rafanelli, Juan Rodríguez (ambos do Sui Generis), Aníbal Kerpel e Pino Marrone (ambos da Crucis).


Charly fundou a Banda del Amor ao lado de Lebón, mas não durou muito, vindo para o Brasil em busca de novos ares, já que estava bem influenciado pelo pessoal do Clube da Esquina, onde construiu o projeto Seru Giran. 

Cutaia formou o Ce.Ce. Cutaia ao lado de sua esposa, Carola, com quem gravou o álbum Rota Tierra Rota em 1979. Lançou então três álbuns solos (Ciudad de Tonos Lejanos em 1983, Carlos Cutaia Orquestra em 1985 e Sensación Melancólica em 2005) e dedicou-se à produção de bandas. Em 2005 recebeu o prêmio Carlos Gardel pelo seu trabalho no álbum Para la Guerra del Tango, onde misturava o tango com o jazz. 

Gustavo intregou um quarteto ao lado de Oscar Moro, Alejandro Lerner (teclados) e Rinaldo Rafanelli (baixo), seguindo como músico na banda de Luis Alberto Spinetta. Entre 1980 e 1984 fez parte do Los Abuelos de la Nada, e paralelamente participava do grupo que acompanhava Charly. Em 1987 lançou seu único disco solo, Joven Blando, que contava com a participação de Charly e Moro. 

José Luis fez pequenas participações com a banda de Charly antes de ir morar nos Estados Unidos, onde trabalhou no seu álbum solo, Mira Hacia el Futuro, lançado em 1982. Participou de vários grupos na Europa e, em 2007, lançou o disco Piedra por Cristal. Por fim, Oscar Moro fundou a Riff e fez parte da Seru Giran, e em 1983 formou o Moro-Satragni ao lado de Beto Satragni, vindo a falecer em 2006.



Os discos do La Máquina de Hacer Pájaros, seja pelas idéias musicais ou pelo conjunto sonoro emanado pelos integrantes, são peças fundamentais dentro de qualquer coleção de rock progressivo. A busca pelos mesmo e, principalmente, a raridade, faz com que os valores dos álbuns ultrapassassem R$ 100,00, chegando a valer R$ 500,00 em suas versões originais, o que mostra como a banda conseguiu obter o respeito e a valorização mesmo após ter encerrado a carreira de forma tão rápida. Não é a toa que são considerados como o Yes do mundo subdesenvolvido, caracterizando-se hoje como uma das mais raras e importantes bandas da América do Sul.

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